A História de Joca Boieiro

Lembro-me que foi há muito tempo atrás, na minha infância, que conheci Joca Boieiro, lá pelos lados de Parada do Alto, em Sorocaba.

Joca era um daqueles tipos simples que aparecem em todo lugar por onde a gente ande, mas tinha uma qualidade mais rara um pouco: era extremamente sonhador. Sonhava que era tropeiro, daqueles do século passado, com dinheiro a grandes tropas de muares e causos de valentias contra índio e onças. Sonhava que fora escolhido, por mistérios que não revelava de jeito nenhum, para conduzir o maior gado que já se tivera notícia, numa viagem que começaria em Sorocaba com destino a Corumbá. Tal viagem, segundo ele, duraria quase três anos e ao todo seriam mais de duzentas mil cabeças de gado andando pelas estradas do Brasil, num galope de dar gosto.

Seu nome verdadeiro? Joaquim Servil Tropeiro. Talvez este seja sua causa mor de loucura. Talvez fosse louco mesmo que se chamasse Carlos Drummond de Andrade. O que interessa é que ninguém contava histórias como ele. Seus causos eram famosos por toda a redondeza, principalmente os que tratavam de lutas com entes mágicos da floresta. Era só aparecer um curupira na história que o povo vibrava. De acordo com ele mesmo, Boieiro lutara com lobisomem, curupira, vampiro, saci, e muitos outros. Só com mula sem cabeça não lutara, mas era apenas uma questão de tempo...

Beirando os sessenta anos e eu nos meus cinco, não me parecia de modo algum insincero. Ao contrário, era tamanha sua convicção que ficávamos escutando-o por horas, perdendo sempre aquelas tardes de sábado. Durante os demais dias, Boieiro sumia. Decerto (penso hoje assim) trabalhava em algum buraco por aí, mas não era o que contava não... Para toda a nossa turminha, Boieiro estava era preparando o terreiro para a sua Grande Viagem.

Sem falta, todos os sábados, chegava ele na pracinha, em cima de sua mulinha Genoveva (mais velha que este rio aí do lado, o Sorocaba!), que penava e bamboleava para carregar aqueles ossos velhos que eram o Boieiro. Parava e, num lance de pernas, apeava. Corríamos afagar Genoveva que de tão feia combinava prá valer com o Boieiro, que com paciência amarrava-a ao postinho de luz. Tão logo chegava, já soltava seu grito de guerra - "Eh! Boi!" - e como por encanto surgiam garotos de todos os lugares e amontoavam-se para escutar o Boieiro.

"Eh...", começava, com dezenas de olhinhos fitos em si, "vô falá do que me aconteceu há cerca de trinta ano atrás, quando ainda tinha força prá levantá a Genoveva com uma mão só. Tava ieu perambulando pur este mundão de Deus quando foi que me arresorvi de entrá numa floresta lá pelos lado de Brigadeiro Tobias. Pois nem bem entrei déiz metro prá dentro da dita-cuja que já escuto o miado da mardita onça do pé de boi. Prá quem num sabe..."

E por aí ia sua história, em que a onça era um bruta de um onção que andava sempre em casal, e que ninguém conseguia acertar um tiro na bicha. Ninguém até o nosso herói cruzar-lhe o caminho... Dizia que, para salvar Genoveva, enfrentou a super-onça com apenas um facão e uma cartucheira antiga, com apenas dois cartuchos. Descrevia todos os procedimentos, as rezas e o que mais precisava para matar este bicho que era nada mais nada menos que o animal de estimação do próprio Tinhoso. Era preciso ter coração puro e braço forte, pulmões de aço e olhar de fogo...

Vibrávamos quando a cartucheira falhava uma, duas vezes e Boieiro investia para a bruta com apenas o facão. Dizia que a bruta, quando viu seus olhos, deu um miado de pavor e começou a fugir com seu parceiro. Boieiro, num salto, cortou o pescoço da onça-fêmea e partiu ao encalço do macho. Depois de cerca de duas horas correndo atrás do monstro, Boieiro nem precisou usar o facão que a onça, por causa da correria, não aguentou e morreu de canseira. Seu canto de morte foi ouvido por toda Sorocaba e saiu nos jornais do dia seguinte com a manchete: "Causa de Urro Demoníaco Ainda Não Explicada."

Passaram-se os anos e sempre Joca contando seus causos e suas andanças. Uma história que me marcou muito foi a do casamento do Boieiro com a filha do cacique Numbitubá, salva por Boieiro de um destino pior que morte ao ser perseguida por um lobisomem. Boieiro, com sua valentia singular, encarou de frente o bicho e meteu-lhe o facão no bucho. Como lobisomem só morre com algo que seja de prata, Boieiro cortou-lhe a cabeça, arrancou seus olhos e queimou-os. Assim o lobisomem, mesmo vivo, não machucaria ninguém e Boieiro teria tempo de procurar um punhal de prata.

Seu casamento foi cercado das honras devidas a um herói, e a festa que seguiu durou três luas. Só saiu da aldeia quando sua esposa morreu picada por um jararacuçu. Ainda trazia no seu peito a tatuagem que mostrava ser ele o legítimo herdeiro da tribo Puncaju, os maiores guerreiros que o Brasil já conheceu, e só que não a mostrava para ninguém porque era mágica, etc. e tal...

Enfim chegou o Grande Dia de Joca Boieiro. Era uma quinta-feira e estranhamos ao escutar o Eh-Boi naquele dia errado, mas por via das dúvidas, corremos para lá.

Boieiro estava bem arrumado, com uma roupa de couro e um chapelão igual ao dos bandeirantes (não sei se tropeiro e bandeirante vestiam as mesmas roupas, mas sinceramente, pouco me importava), seu bacamarte todo lustrado e a Genoveva escovada e toda aparamentada com mantimentos. Boieiro parecia uma figura de filme e nenhum garoto ousava perguntar por que ele estava vestido assim. E nem precisava... Todos sabíamos que era aquele o dia, faltava apenas o grande rebanho.

"Não se apreocupem que os muar ieu encontro na saída de Sorocaba. Mas ainda tem tempo de ieu contá uma história, a maior aventura que Joca Tropeiro (era assim que se autodenominava) véveu até a de hoje..."

Contou uma história de arrepiar, queando lutou com o Curupira pela posse de um porco do mato que ele tinha matado e que, em troca, o Curupira queria a Genoveva. Durante mais de três horas desfiou uma aventura e no final disse que somente o venceu quando mostrou a sua tatuagem, mostrando ser ele próprio um guerreiro. Nesse dia mostrou a sua tatuagem para todos nós e comprovamos, in loco, a veracidade de todas as suas histórias.

Chegada a hora, subiu na Genoveva e aos berros pedíamos para segui-lo até o encontro do rebanho. Depois de uns dois minutos pensativo, Boieiro concordou, com a condição que fôssemos somente até lá e que ficássemos afastados porque o gado podia estar bravo. Concordamos no ato.

Duas horas e meia depois, Boieiro e sua tropa de quarenta meninos chegava ao local de encontro e lá só se via dois bois magros e um cavalo mais magro ainda. Nossa decepção era imensa, mas Boieiro não deixou cair a bola:

"Pelo jeito me atrasei. Isso é que dá contá tantos causo. Tudo bem, que Deus é pai. Vou levando estes e arcanço os otro no caminho. Até mais ver, meus amigo"

E a gurizada delirava! Bonés voavam, um "Eh! Boi!" forte era gritado a cada segundo e víamos Boieiro desaparecer numa curva da estrada. Ficamos lá ainda cerca de meia hora confabulando o que falar à televisão e ao rádio quando fôssemos procurados. Combinamos que só contaríamos os fatos corriqueiros e, obviamente, nenhuma palavra sobre a tatuagem...

Durante meses esperávamos por notícias no rádio, jornal e televisão, e nada. Joca Boieiro foi para nunca mais voltar e foi desaparecendo da nossa memória. Só sobrou seu grito de guerra, que até meus onze anos, mais ou menos, era aviso de reunião da meninada. "Eh! Boi!, Eh! Boi!, Eh! Boi!..."

Um herói como poucos, Boieiro foi o nosso Quixote. Ainda hoje surpreendo-me procurando no jornal notícias de Joca Boieiro, que estaria atualmente mais que centenário e sua mulinha Genoveva mais velha que o sol e a lua.

Coisas de criança, é claro...