O Pequenino

Acordar de manhã, tomar um café, às vezes um banho, beijar a mulher, entrar no carro, chegar no serviço pontualmente às oito horas, trabalhar a manhã toda, almoçar no restaurante francês, trabalhar de novo, às seis horas terminar, pegar um congestionamento, chegar em casa, beijar a mulher, jantar, assistir a novela das oito e dormir.

Esta era a vida de Jarbas Franco, um grande empresário, dono da Franco Futuros e considerado por todos um grande homem, aquele que era invejado e admirado por todos, símbolo de status e sucesso. Mas nem tudo foi grandeza na vida de Jarbas. Aquele 19 de novembro mudaria completamente sua rotina e seu modo de observar o mundo.

Após fechar um grande contrato com uma multinacional, resolveu comemorar com a família e saiu mais cedo que de costume. Ao entrar no seu carro, sentiu que algo estava errado: além do chofer, havia mais alguém dentro do carro. Uma presença inquietante que parecia tomar conta de tudo pairava ao seu lado. Criando coragem, Jarbas virou para o lado e percebeu um boneco parecido com um anão de desenho animado, com meio metro de comprimento. Tamanha foi sua surpresa quando o boneco olhou para ele e falou:

-Olá pequenino, tudo bem?

Jarbas riu-se daquilo. Era uma surpresa perfeita este boneco que fala e parece vivo. A eletrônica evoluira muito, pois o boneco tinha até um brilho humano nos olhos.

-Eu fiz uma pergunta, pequenino. Poderia responder ?

-Eu vou bem, muito bem, disse Jarbas cooperando com a brincadeira, mas quem mandou você aqui?

-Alguém que, pelo jeito, precisava me castigar. Por mim, eu estaria bem longe daqui, pequenino. Aliás, estou aqui justamente porque você, dentro da sua pequeneza, não o conhece.

Isto era uma coisa que Jarbas não admitia; tudo bem que recebesse uma surpresa, contrariando todas as normas que havia imposto contra sequestros, mas ser ofendido era diferente. Bateu no vidro para pedir ao chofer que parasse o carro e jogasse fora o boneco.

-Ele não vai te ouvir, pequenino, porque antes preciso falar com você.

O pânico tomou conta de Jarbas! O boneco estava vivo! Tentou abrir a porta, mas ela parecia soldada. Algo maior que sua compreensão o confinara naquele carro.

-Não adianta tentar, pequenino. Preciso ter uma conversa séria com você e nada irá impedir.

-Quem é você, perguntou Jarbas. Um demônio enviado para me levar ao inferno?

-Sou uma maravilha da eletrônica, ou quem sabe uma surpresa de um amigo, ironizou o ente.

-Você leu minha mente!

-Não vamos perder tempo, venha comigo...

Ao dizer isto, o ser abriu a porta ao seu lado e um cenário totalmente diferente da rua onde trafegava apareceu ali: eram castelos medievais, fadas voando, árvores gigantescas, rios correndo ao contrário, milhares de seres fantásticos, que ele aprendera a esquecer quando cresceu. Jarbas não deixou de notar que nada neste mundo misterioso se comparava com o ser ao seu lado; o mundo lá fora lembrava seus sonhos infantis, antes de começar sua vida na sociedade, antes de ser contaminado por esta.

-Pequenino, vamos fazer um passeio, disse o anão tirando Jarbas de seu devaneio.

Jarbas não se conteve e, com um olhar de suprema superioridade, falou:

-Já se olhou no espelho, anão? Sou um grande empresário, respeitado nos quatro cantos da terra e não vai ser você que vai me desrespeitar!

Ao ouvir do anão um "Benvindo ao quinto canto!", algo como um vento, mas muito gélido, pior que o que sentira nas férias no Alaska passou por ali, e parecia que tudo sussurrava ao mesmo tempo:

-Pequenino! Pequenino! Pequenino!...

-O que foi isto, perguntou Jarbas?

-Pequenino! Pequenino! Pequenino!...

-Exijo uma resposta, anão!...

O anão continuava a andar numa carreira meio aos pulinhos, nem ao menos olhando prá trás. E o sussurro continuava...

Vendo o anão distanciar-se, Jarbas saiu atrás porque aquele mundo onde estava parecia cada vez menos com seus sonhos e assemelhava-se cada vez mais a seus pesadelos. Não havia nenhum ser à vista, exceto o anão, que já se distanciava. No entanto, o nada parecia tomar conta do seu redor, ocupando mais espaço que o tudo.

Após seis horas andando sem parar, chegou a um precipício e encontrou lá o anão, que tinha se adiantado tanto que sumira de vista cerca de meia hora atrás. Ele estava sentado na raiz de uma árvore, na beira do precipício, tomando um líquido que vertia de umas pedras.

-Pode ir na frente, pequenino, que logo alcanço você.

-Mas tem um precipício aqui! Como vou continuar?

-Pule!

-Está louco? São mais de dez metros!

-Eu sabia... Nunca devia ter me sujeitado a ensinar você, pequenino! Pule pensando que vai conseguir...

Jarbas resignou-se. Tomou distância, concentrou-se, correu e pulou cerca de quinze metros. Afinal, era muito provável que estivesse completamente louco e prestes a morrer mesmo... Ao cair do outro lado, olhou para trás e não viu mais o precipício; havia apenas a árvore e o anão sentado. Este levantou-se, passou ao lado de Jarbas e , sem virar-se, falou:

-Vamos pequenino...

Sem entender nada, Jarbas correu o máximo que pôde para acompanhar o anão, que não parecia fazer força para ir em frente.

-Anão, não agüento mais de sede!

-Beba água então, pequenino.

-Mas não existe água em lugar nenhum, apenas este caminho e o sol que...

Não pode concluir. O vento gélido aumentara de intensidade e fazia-o tremer de frio. Já não mais sussurrava o vento; agora parecia gritar aquela palavra infernal:

-PEQUENINO! PEQUENINO! PEQUENINO!...

Olhou para frente e viu o anão parado, olhando-o com um sorriso enigmático. Jarbas não aguentava mais. Fechou os olhos e gritou com todas as forças, mas não conseguiu superar o vento.

Ao abrir os olhos, estava num lugar totalmente diferente. O vento desaparecera e junto ao caminho, o anão molhava os pés num rio cristalino, daqueles que existem nos filmes de faroeste. Jarbas compreendeu seu estado e chegou perto do anão:

-Diga-me, anão, estou louco, não estou?

-Está, mas pode ser curado.

-Você faz parte da minha loucura. Isto não é real e eu preciso de um hospital...

Nem bem acabara de falar e encontrava-se realmente num hospital de luxo, com sua esposa a vigiar-lhe.

-Querido! Você acordou! Fazem oito dias que você está em coma! Achamos que não havia salvação, mas você voltou a si...

-Amanda, quero água...

Sua esposa vinha trazendo o copo quando tudo voltou a tornar-se confuso e ele sentia que voltava ao seu sonho. Pareceu escutar muito ao longe os gritos de sua esposa, mas isto era muito longe...

-Voltou rápido, pequenino. Quer um pouco de água?

-Estou louco!

-É verdade. Você acaba de ter uma recaída, mas vou providenciar que isto não ocorra novamente...

Jarbas bebeu a água como quem bebe o melhor vinho do mundo, saboreando cada gota como se fosse a última...

-Diga-me, você é um duende?

-Duende é o mais perto que a imaginação humana já chegou de mim, mas pode me chamar de anão mesmo, pequenino...

-Anão, por que me chama de pequenino, se sou o Jarbas, um dos maiores empresários do mundo?

A resposta foi a volta do vento, que sussurrava de novo a palavra...

-Por favor, anão, mande-o embora! Não agüento mais isto! Este vento vai me levar à loucura! O que ele quer me dizer?

-Ele poderá ser sua loucura, pequenino, mas poderá ser sua cura. Depende apenas de você. Já bebeu o suficiente, pequenino?

-Já. Vamos prosseguir a viagem.

Andaram durante horas, mas agora o anão acompanhava-o e de tempos em tempos fazia alguma observação, como o formato de uma folha, o vôo de uma fada, o encontro de duas formigas.

Jarbas ouvia aquilo espantado. Este anão, que parecia tão superior estava preocupando-se com coisas sem importância! Concluiu que era mais um teste para sua paciência...

Estava anoitecendo quando chegaram a um imenso castelo, com suas torres que ultrapassavam as nuvens, seus portões onde passaria com folga um DC10, seu fosso continha monstros maiores que baleias. Ao entrar lá, o anão foi recebido com festas enquanto que ele, o grande empresário Jarbas, era quase que ignorado! Realmente, sua loucura era preocupante...

O jantar foi algo sublime! Não havia um prato conhecido que chegasse aos pés de qualquer daqueles! Havia doces que pareciam raios de sol, sopas que lembravam o oceano abissal, carnes que sussurravam odores coloridos, bebidas que mudavam de cor a todo instante... Tudo era maravilhoso, e Jarbas esqueceu por um momento que era louco, pensando apenas no momento sublime em que vivia...

Terminado o jantar, foram a outra sala onde uma orquestra de um milhão de músicos preparava-se para tocar. Cada instrumento mais estranho que o outro, mas em tudo repousava aquela harmonia especial.

A música foi diferente de tudo que já ouvira. Sentiu-se transportado a um paraíso distante que nem sequer sonhara. A música tinha sabor, tinha volume, tinha cor, tinha som...

No entanto, estranhou ao saber que não dormiria ali. O anão já estava nos portões e ao sair Jarbas ganhou um suprimento com alimentos e água para muitos dias. O anão não ganhou nada.

-Anão, você não levou nada do castelo?

-Eu não preciso, pequenino...

-Mas são presentes que não se acham em lugar nenhum!

O anão manteve-se quieto e na primeira árvore que encontrou, deitou-se para dormir. Jarbas fez o mesmo, mas como recebera uma cama grande que não tinha peso nem volume quando transportada. Montou-a e preparou-se para dormir.

Ao olhar o anão dormindo no chão, uma voz dentro dele disse:"Este é o lugar dele!", mas Jarbas, sentindo o vento de novo, acordou o anão e ofereceu um espaço para ele. O anão sorriu, mas recusou e voltou a dormir. Jarbas então, num impulso, pegou sua coberta e cobriu o anão. Neste mesmo instante, o vento parou e um calor delicioso preencheu tudo. Ao deitar-se na cama, Jarbas tinha a sensação de que o anão estava sorrindo...

Dormiu, e sentiu várias pessoas ao seu lado. Sentiu tubos enfiados em seu corpo e, ao abrir os olhos, percebeu que voltara ao hospital.

Sentiu uma angústia indefinível ao ver sua esposa ao seu lado, acompanhada de seus filhos, todos com os olhos fundos e vermelhos. Tentou falar, mas o tubo em sua traquéia impedia-o. Então apenas olhou, olhou, olhou, piscou, olhou...

Era de manhã e ele estava de novo ao pé da árvore ainda deitado, enquanto o anão gritava e pulava, numa alegria estranha... Perguntou, e ele disse que saudava seu irmão. Para Jarbas tudo parecia sem sentido, mas percebeu depois de algum tempo que o Sol era o estranho irmão. Num gesto até certo ponto impensado, falou baixinho:

-Olá, irmão Sol...

O anão parou de repente. Agora ele olhava Jarbas com uma alegria ainda mais estranha, andou na sua direção e disse que deviam seguir viagem.

Pouco tempo depois chegaram a um grande rio onde não era possível ver a outra margem, mas o caminho passava por ele. Olhou para o anão, que parecia distante, molhando seus pés no rio. Resolveu esperar, mas como o anão não se mexia e nada acontecia, começou a ficar impaciente. Fechou os olhos, porque o Sol já estava forte e, num impulso, imaginou uma ponte como um arco-íris, que chegava até o outro lado do rio. Ao abrir os olhos, viu a ponte materializada. Algo dentro dele já sabia disso... Olhou para o anão e ele já estava seguindo por ela...

Durou duas horas e meia a travessia do rio e ao chegar na outra margem, para confirmar o que já suspeitava, virou-se e não viu mais sinal de ponte nem de rio.

Olhou feliz para o anão, que após algum tempo sorrindo, deu um pulinho e disse:

-Pequenino, você está crescendo!

-Você é na verdade meu amigo, e não um carrasco. Tudo isto que estou passando é para mostrar minha pequenez espiritual, não material...

O anão deu um gargalhada. O Sol brilhou mais. Os seres fantásticos aproximavam-se: eles estiveram todo o tempo ali... Por muito tempo mesmo, só ficaram escondidos por medo do Jarbas adulto. Eram todos seus amigos...

-Parabéns, Jarbas.

-Não sou mais pequenino?

-Agora é um de nós!

Longe, muito longe, um choro se fez ouvir: era sua esposa. Vários choros aderiram e Jarbas angustiou-se. Olhou em volta e todos olhavam para ele. Afinal sorriu, deu a mão a um fauno e a uma sereia, olhou para frente e continuou caminhando com seus amigos.

Os choros pareciam cada vez mais distantes e abafados, mas Jarbas agora nem pensava mais neles, pois afinal, ele agora era grande!...